Ser homem ou mulher é uma questão em aberto


  Andrej Pejic, modelo androgino

Recentemente fui apresentado a um texto na faculdade, mais especificamente na minha aula de Antropologia, que tem como título "A roupa faz o homem: a moda como questão" escrito pela psicóloga Denise Portinari e pela publicitária Fernanda Coutinho. O texto faz menção ao relacionamento do jovem com a moda, e como essa se figura no Brasil. Trata da maneira peculiar e permissiva o comportamento do jovem e suas transformações desde os anos 50 até hoje. 
  Como e de que maneira a mídia e as campanhas publicitárias afetam o estilo e a imagem visual de cada um. Fala também sobre a vestimenta lançada pelo artista plástico Flávio de Carvalho em 1950, uma saia estilo kilt para os homens juntamente com uma camisa de mangas curtas e na altura da cintura, que era uma vestimenta apropriada ao calor dos trópicos. Por ser uma época totalmente conservadora e a regida por uma divisão social hierárquica em seus moldes de trabalho, a imprensa taxou sua criação como uma mera façanha escandalosa de autopromoção. 
 O texto vai caminhando e chega a uma cultura que exibia o não-conformismo, que exalava valores de expressão individual, descontração, androginia humor e espontaneidade, os corpos masculinos passam a se igualar aos corpos femininos em certas características, e é justamente nessa fase que se dá a "Revolução do Pavão", ou seja, uma nova e original maneira que o homem passa a lidar com a exploração de suas roupas, usando-as de todas as formas possíveis.
  Pesquisando um pouco mais a respeito do assunto aqui na internet, encontrei uma entrevista das duas escritoras à Revista IHU Online, que respondeu algumas perguntas pertinentes quanto a esse novo estilo, a essa nova aparência masculina que tem por inspiração, alguma das vezes, o feminino. Confiram agora na integra a entrevista.

IHU On-Line - Dentro do contexto do estudo de vocês, em específico o artigo A roupa faz o homem? Uma reflexão sobre os jovens, a moda e os processos de subjetivação na cultura contemporânea, como os jovens se relacionam com a moda?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Acreditamos que o tema das relações entre "os jovens" e "a moda" deve ser abordado por meio de um questionamento inicial sobre a própria noção de "juventude", como forma de subjetividade construída historicamente e incorporada pelos indivíduos por meio da ação naturalizadora do imaginário. Muito concisamente, podemos dizer que essa categoria - o jovem - foi constituída por diversas práticas e diversos discursos, superpostos e mesclados ao longo do tempo, desde o século XVIII. Ela começa a ser esboçada nos discursos médico e jurídico, aos quais se acrescentam a psicologia, sociologia, e pedagogia dos séculos XIX e XX, sendo apropriada de forma bastante decisiva pelos discursos ligados ao consumo e circulação de mercadorias desde meados do século XX. É a partir daí que as "relações" entre o jovem e a moda podem começar a ser examinadas. Neste artigo, introduzimos nesse exame um terceiro termo, que é o da lei. O que é a moda,como "legislação", ou seja,como código de regulação dos corpos e das condutas? Quais as relações entre essa categoria, "os jovens", e essa forma de lei? Como isso se articula com as outras formas da lei?

IHU On-Line - Como as características desses jovens se expressam por meio da moda que consomem? Qual é o perfil desses jovens?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- O problema é que, coisas como "a expressão da identidade através da moda", ou um "perfil" associado a certos hábitos de consumo, estamos falando sobre a visada pelo marketing e de outros discursos ligados ao consumo e à circulação de mercadorias, Isto é, estamos nos colocando no lugar de quem fala de determinadas premissas, que incluem a naturalização de formas de subjetividade e a crença em uma equivalência entre as categorias subjetivas e as vivências individuais. Portanto, em princípio, só podemos fazer associações entre identidades e perfis, de um lado, e categorias, imaginários e discursos, de outro. O que é preciso evitar aí é toda pressuposição sobre uma correspondência real com os indivíduos.

IHU On-Line - Vocês poderiam definir as diferenças entre a moda verdadeira da moda oficial?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho – Não sei se há uma "moda verdadeira". O que há são modismos que surgem mais ou menos espontaneamente, em determinados grupos, e que envolvem toda uma estética (determinadas peças de vestuário, cortes de cabelo, acessórios, tatuagens, gestos, entonações, objetos de uso pessoal etc.). Esses modismos, essa estética, às vezes são apropriados pelo mercado, que os explora e difunde, resultando, via de regra, em uma pasteurização, uma banalização, um esvaziamento daquilo que poderia ter sido a sua força ou graça originais.

IHU On-Line - Como podemos compreender a liberdade de tendências suscitada pelos editoriais de moda e os códigos específicos de cada grupo, que entendem o uso de algumas coisas como "pagar mico"?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Os editoriais de moda - que fazem parte daquilo que Barthes chamou de "sistema de moda" - produzem toda uma retórica da liberdade, especialmente no que concerne "os jovens", figura mítica que habita essa mesma retórica. Todavia, a julgar-se pelo que se passa entre os chamados "jovens", os modismos específicos dos pequenos grupos podem ser bastante tirânicos, não deixando espaço para desvios ou divergências. O tênis tem que ser aquele tênis, o cabelo tem que ser aquele cabelo, etc. Os desvios e as divergências acarretam o "pagar mico", ou seja, passar vergonha.

IHU On-Line - Vocês poderiam explicar a afirmação contida no artigo de que o imaginário brasileiro relativo à identidade masculina se ampliou?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Partindo da premissa de que o imaginário, como bem afirma Portinari, é o registro pelo qual as formas de subjetividades são ofertadas aos indivíduos, que se "colam" a essas formas, podemos afirmar que nos dias atuais há um repertório maior de perfis de masculinidade que são sugeridos aos indivíduos. Portanto, é só comparar a gama de modelos de masculinidade encontrada no dias atuais com os antigos formatos sugeridos pela tradicional sociedade brasileira, que tinha como ideal de masculinidade um modelo menos flexível, digamos assim. Hoje, existe um número infinitamente maior de possibilidades, que podem incluir o uso de brincos, cabelos tingidos, culto ao corpo etc. Cabe chamar a atenção para os guias de estilos direcionados ao homem vendidos nas livrarias: Chic Homem - Manual de Moda e Estilo da consultora de moda. São Paulo: Senac, 1998, de Gloria Kalil e O Metrossexual- Um manual para o homem moderno. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004, de Michael Flocker são apenas alguns exemplos.

IHU On-Line - O que é a moda do "novo homem"? E o que foi a Revolução do Pavão? Há algo similar em nossos dias?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Não acreditamos na existência de um "novo homem". Quando decidimos fazer uma reconstrução histórica para identificar este sujeito amplamente divulgado pelos veículos de comunicação de massa, percebemos que a preocupação com a aparência "sempre" esteve presente na vida dos indivíduos do sexo masculino. Entretanto, as formas como manifestavam este cuidado eram limitadas, já que o repertório era bem mais restrito. Contudo, podemos afirmar que este "novo homem" embute uma série de modelos resultantes de um longo processo de questionamento dos papéis sexuais e da própria sexualidade desencadeado na sociedade ocidental contemporânea. Já com relação à Revolução do Pavão, Valerie Steel, assim como muitos historiadores de moda, retrata a referida revolução como sendo, possivelmente, o período de desenvolvimento mais notável da indumentária dos anos 1960, cujo marco é a dramática transformação da vestimenta masculina. Neste período, o homem passou a usar estampas extravagantes, ternos sem colarinho, calças justas, rufos, babados, lapelas largas, camisas coloridas e psicodélicas. As roupas tornaram-se cada vez mais unissex. Homens e mulheres passaram a freqüentar as mesmas butiques e a comprar praticamente os mesmos produtos. Quanto ao fato de existir algum movimento semelhante nos dias de hoje, acreditamos que não. As tribos como as do metrossexuais  e as dos emos  podem ser analisadas como pontua Lipovetsky  como expressão de um traço da personalidade, orientação cultural, estilo de vida e disposição estética.

IHU On-Line - A despeito da "indiferenciação" proposta pelo mercado, os jovens ainda fazem questão de conferir à moda que consomem um papel masculino ou feminino? Por quê?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Julgamos que sim. Esta resposta poderia ser dada de inúmeras formas e de diversos recortes. Entretanto, vamos mais uma vez recorrer ao Lipovetski quando ele declara que a diminuição das diferenças extremas entre homens e mulheres, não tem por objetivo alcançar a unificação das aparências, mas apresentar uma diferenciação sutil. Por trás da liberação dos costumes e da flexibilização dos papéis, afirma em seguida o autor, um interdito intocável continua sempre a organizar o sistema das aparências com uma força de interiorização subjetiva e imposição social: vestidos e maquiagens são apanágios do sexo feminino e, por conseguinte, rigorosamente proscritos ao homem. O masculino está condenado a desempenhar indefinidamente o masculino.

IHU On-Line - Ser homem ou mulher hoje é uma questão de gosto?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Podemos dizer que é ainda uma questão - literalmente, pois é uma questão que sempre permanece em aberto, de alguma maneira, na medida em que é impossível de ser fechada, ou "resolvida", como se diz - uma questão do desejo.

IHU On-Line - Nossa aparência virou nossa essência? Até que ponto o culto exagerado à aparência esconde as fragilidades do ser humano?

Denise Portinari e Fernanda Coutinho
- Não acreditamos em essência do sujeito. Diríamos apenas que sujeito é uma obra aberta em permanente construção e a preocupação com a aparência é mais um desses elementos que participam dessa construção. É verdade que o discurso predominante na sociedade de consumo contemporânea é sempre aquele que promete resolver, solucionar - obliterar - todas as questões que sustentam essa abertura, inclusive aquelas que concernem a aparência. Todavia, também há, ainda, na outra face desses discursos, toda uma condenação moralista da preocupação com a aparência, o visível, o superficial.

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